Ao contrário do que muitos julgam, a manutenção "obstinada" do ministro Crato por parte de Passos Coelho, depois de tudo o que se passou, nada tem de teimosia pessoal. Ou, pelo menos, não é principalmente um caso de teimosia pessoal.
Nem se deve dizer "apesar de tudo o que se passou", mas antes quase se deve dizer "precisamente por se ter passado o que se passou". Não há aqui uma teimosia particular, individual, o resultado fortuito ou casual do carácter do indivíduo Pedro Passos Coelho que calharia ser "obstinado", "estulto", "burro", etc. Temos aqui qualquer coisa como uma teimosia não episódica, não pontual, não "conjuntural", mas sim "estrutural". Esta obstinação do primeiro-ministro está inscrita na própria natureza do governo e da sua governação.
Isto é, se este fosse um governo "normal", um governo que procurasse gerir o melhor possível a coisa pública, mesmo com uma ou outra "reforma", o seu primeiro-ministro preocupar-se-ia com a "incompetência", com o "ruído" e até com os danos infligidos a tantos milhares de alunos, professores e famílias. Mas não. É que este é um governo revolucionário chefiado por um primeiro-ministro com um projecto revolucionário para o país (uma "refundação do Estado", lembram-se?...), um projecto salvífico que vem corrigir erros "estruturais" acumulados ao longo de décadas de "socialismo".
Está uma revolução em curso. Crato é um elemento-chave nessa revolução. Passos não vai desperdiçá-lo nem vai puni-lo por aquilo que é inevitável: os desagradáveis efeitos colaterais do processo revolucionário.
Para estes agentes políticos, na verdade, tudo se passa como se fosse a "realidade" a estar errada. É ela que - por uma distorção essencial de décadas - não se adapta às mudanças que lhe aplicam - autênticos tratos de polé. São essas distorções da "realidade" que se trata agora de corrigir. Isto é, há que reconduzir a "realidade" ao estado que lhe é natural. O sofrimento e o prejuízo de professores e alunos são apenas as dores de parto dessa nova era que está nascendo.
Por isso, não vale a pena tentar "compreender" a obstinação do primeiro-ministro - que, de um ponto de vista "normal", é incompreensível, irracional. Acontece que este não é o ponto de vista de Passos Coelho e dos que o acolitam e todos os dias o encorajam.
É preciso ser "corajoso", "determinado" e ignorar os lamentos desta nova variante dos "piegas" e seguir em frente - porque a História nos dará razão, absolver-nos-á, etc.
Nem de propósito, o Público exibia ontem esta foto do ministro da Educação, num "centro escolar" em Forjães, Esposende [ver]. A imagem é felicíssima - no seu acaso cruel é reveladora. A alegoria involuntária foi aqui mais verdadeira que a imagem quotidiana. Lá está Crato, de punho direito erguido, o sinal da força, da ameaça e, sobretudo, da certeza da Revolução (dir-se-ia regressado aos vinte anos, quando era um militante partidário e entusiasta de Enver Hoxha.); não falta o olhar esgazeado em alvo febril - um olhar que avista a Verdade para lá dos escombros. O primeiro-ministro lá está também, dominando, discreto, sabendo-se sem necessidade do espavento.